quarta-feira, 12 de março de 2014

Renovação e Missão

Cardeal Orani Tempesta – Arcebispo do Rio de Janeiro
Nestes tempos de tantas mudanças e transformações, resultado da mudança de época que estamos vivendo, quando muitas vezes nos perguntamos para que rumo estamos nos dirigindo, gostaria de compartilhar algumas reflexões durante este tempo quaresmal, que deveriam iluminar a nossa vida eclesial. “A Igreja peregrina, por sua natureza essencialmente missionária, recebeu o mandato solene de anunciar a verdade salvífica até os confins da terra”.
Nestes tempos de grande agitação sociológica, e sintonizados com a preocupação da Igreja do Brasil que estuda o documento (que será aprovado na próxima Assembleia dos Bispos) que procura compreender a Paróquia enquanto comunidade de comunidades e à luz do Documento de Aparecida, venho reforçar a necessidade de fortalecermos a dimensão missionária de “ir ao encontro do Outro”. Um caminho proposto é seguir as orientações dadas pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.
O que nos ensina a Igreja? Somos convidados a fortalecer as instâncias de diálogo e missão paroquial através das pastorais, movimentos, associações, comunidades para que possamos incrementar a nossa presença nesta grande cidade. Por isso, devemos ter uma visão forte da presença da família que evangeliza, que ajuda os pastores e as lideranças a tornar o Cristo mais conhecido, amado e seguido. É presença dos cristãos leigos no mundo em todos os âmbitos. Nesse sentido, a Dimensão Familiar, com todos os seus movimentos e pastorais, nestes tempos de dificuldades e questionamentos com relação a esse tema, deveria estar presente no centro da atenção de todos nós. Aqui, a convocação do Sínodo dos Bispos sobre a família nos aponta bem claro nessa direção. Por isso, as coordenações de pastoral paroquial, os coordenadores de Comunidades fortaleçam em suas reuniões e encontros a dinâmica missionária dos agentes. Lembrar que a missão é mandato de Jesus: Ide e evangelizai! “Sair dos próprios confins, anunciar o Evangelho e edificar a Igreja”.
O Papa Francisco não cansa de repetir, e exaltou a cultura do encontro e a importância do diálogo como meio de conhecimento recíproco. O Papa João Paulo II escreveu que “lugares privilegiados deveriam ser as grandes cidades, onde surgem novos costumes e modelos de vida” (RM). Além disso, os meios de comunicação devem multiplicar a possibilidade de anunciar o Evangelho e integrar a mensagem nesta “nova cultura”, criada pela comunicação moderna.
Nas grandes realidades metropolitanas, como a nossa cidade do Rio de Janeiro, é preciso, ainda, que a Igreja esteja presente em todos os cantos e seja dinâmica; uma Igreja a serviço do Reino para anunciá-lo, além de testemunhar e difundir os valores evangélicos; rezar para que venha o Reino de Deus, manifestando a convicção fundamental de que o Reino é um dom, que requer desejo, expectativa e invocação.
O Papa Francisco ensina que devemos viver uma Igreja “em saída”. Por isso, é fundamental que as Igrejas estejam com portas abertas durante o dia! E aberta a todos. A Igreja é a casa paterna, onde há lugar para todos com sua vida fadigosa. O primeiro anúncio é sempre o kerigma, a boa notícia que alegra o coração da pessoa por que a acolhe com suas feridas e dificuldades, apresentando-lhe Cristo Jesus.
Saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta, e Jesus repete-nos sem cessar: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6,37)
Por isso, devemos pousar um olhar de fé sobre a realidade que não pode deixar de reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Uma cultura popular evangelizada contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido. E nós sabemos como o nosso povo sabe ser fraterno, acolhedor e solidário!
O Papa Francisco denunciou os desafios do tempo atual: mundanismo espiritual. O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. São aqueles que querem apenas aparecer, propalar o que fazem ou o que construíram materialmente. Como se isso bastasse. É aquilo que o Senhor censurava aos fariseus: “Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único?” (Jo 5, 44). É uma maneira sutil de procurar “os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo” (Fl 2, 21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e situações em que penetra.
O apelo do Papa é provocante e exige conversão pessoal: “Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um testemunho de comunhão fraterna que se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais, animais e ajudais: ‘Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros’ (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração, pediu ao Pai: ‘Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia’ (Jo17, 21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios, que são de todos… Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um ato de evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!”
A salvação de Deus é para todos: ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projeto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho.
Por isso, somos convocados a ser Evangelizadores com Espírito. Uma evangelização com espírito é uma evangelização com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor algumas motivações e sugestões espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si mesma, a fim de evangelizar todos os povos.
A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele, que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Precisamos implorá-lo cada dia, pedir a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente e lhe disse: “Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!” (Jo 1, 48).
Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-Lo, convence-se de que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não o saibam: “Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse que eu vos anuncio” (At 17, 23).
O entusiasmo na evangelização funda-se nesta convicção. Temos à disposição um tesouro de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem desiludir. É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano e pode sustentá-lo e elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, por que é capaz de penetrar onde nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito. Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal, constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor se não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não conhecê-Lo, não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de fazê-lo unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar segura do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada não convence ninguém.
A Conferência de Aparecida é lúcida ao afirmar: “A renovação missionária das Paróquias impõe-se na evangelização tanto das grandes cidades como do mundo rural de nosso continente; isto nos está exigindo imaginação e criatividade para chegar às multidões que anseiam o Evangelho de Jesus Cristo. Particularmente, no mundo urbano, estuda-se a criação de novas estruturas pastorais, posto que muitas delas nasceram em outras épocas para responder às necessidades do ambiente rural” (DAp 173).
Por isso mesmo, cabe a nós, na realidade complexa do Rio de Janeiro, deixar como herança aos nossos familiares o tesouro da fé católica, a vivência das verdades de nossa fé, empenhando-nos numa autêntica renovação pastoral e num verdadeiro sair de si e ir ao encontro do outro, na cultura do diálogo e do encontro.
Mãos à obra, que o olheiro é Cristo, que caminhará conosco neste bom propósito!

domingo, 9 de março de 2014

Integra da entrevista feita com o Papa Francisco pelo jornal ‘Corriere della Sera’.


Um ano se passou desde aquele simples “boa noite” que comoveu o mundo. O arco de 12 meses, assim entendidos – não só para a vida da Igreja – custa para conter a grande quantidade de novidades e os muitos sinais profundos da inovação pastoral de Francisco. Estamos em uma salinha de Santa Marta. Uma única janela dá para um pequeno pátio interno que descerra um minúsculo canto de céu azul. O dia está belíssimo, primaveril, quente. O papa sai de repente, quase de súbito, de uma porta, e tem um rosto relaxado, sorridente. Olha divertido para os muitos gravadores que a ansiedade senil de um jornalista colocou sobre uma mesa. “Funcionam? Sim? Bom”.
A reportagem é de Ferruccio De Bortoli, publicada no jornal Corriere della Sera, 05-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista:
O balanço de um ano?
Não, os balanços não lhe agradam. “Eu os faço apenas a cada 15 dias, com o meu confessor.”
O senhor, Santo Padre, de vez em quando, telefona para quem lhe pede ajuda. E às vezes não acreditam no senhor.
Sim, isso aconteceu. Quando alguém telefona, é porque tem vontade de falar, uma pergunta a fazer, um conselho a pedir. Como padre em Buenos Aires, era mais simples. E para mim continua sendo um hábito. Um serviço. Eu sinto isso dentro de mim. Certamente, agora não é tão fácil fazer isso, dada a quantidade de pessoas que me escrevem.
E há um contato, um encontro que recorda com afeto particular?
Uma senhora viúva, de 80 anos, que havia perdido o filho. Ela me escreveu. E agora eu lhe dou uma telefonadinha a cada mês. Ela está feliz. Eu sou padre. Eu gosto.
As relações com o seu antecessor. Nunca pediu algum conselho a Bento XVI?
Sim. O Papa Emérito não é uma estátua em um museu. É uma instituição. Não estávamos acostumados. Sessenta ou setenta anos, o bispo emérito não existia. Veio depois do Concílio. Hoje, é uma instituição. A mesma coisa deve acontecer para o Papa Emérito. Bento XVI é o primeiro, e talvez haverá outros. Não sabemos. Ele é discreto, humilde, não quer perturbar. Falamos a respeito e decidimos juntos que seria melhor que ele visse pessoas, saísse e participasse da vida da Igreja. Uma vez, ele veio aqui para a bênção da estátua de São Miguel Arcanjo, depois ao almoço em Santa Marta, e, depois do Natal, eu lhe dirigi o convite de participar do Consistório, e ele aceitou. A sua sabedoria é um dom de Deus. Alguns gostariam que ele se retirasse para uma abadia beneditina longe do Vaticano. Eu pensei nos avós que, com a sua sabedoria, os seus conselhos, dão força à família e não merecem acabar em uma casa de repouso.
O seu modo de governar a Igreja pareceu-nos isto: o senhor ouve todos e decide sozinho. Um pouco como o geral dos jesuítas. O papa é um homem sozinho?
Sim e não. Eu entendo o que você quer me dizer. O papa não está sozinho no seu trabalho, porque está acompanhado e é aconselhado por muitos. E seria um homem sozinho se decidisse sem ouvir ou fingindo ouvir. Mas há um momento, quando se trata de decidir, de colocar uma assinatura, em que ele está sozinho apenas o seu senso de \responsabilidade.
O senhor inovou, criticou algumas atitudes do clero, sacudiu o Curia. Com alguma resistência, alguma oposição. A Igreja já mudou como o senhor gostaria há um ano?
Em março passado, eu não tinha nenhum projeto de mudança da Igreja. Eu não esperava essa transferência de diocese, digamos assim. Comecei a governar tentando colocar em prática o que havia surgido no debate entre cardeais nas várias Congregações. No meu modo de agir, espero que o Senhor me dê a inspiração. Dou-lhe um exemplo. Falou-se do cuidado espiritual das pessoas que trabalham na Cúria, e começaram-se a fazer retiros espirituais. Devia-se dar mais importância aos Exercícios Espirituais anuais: todos têm o direito de passar cinco dias em silêncio e meditação, enquanto antes, na Cúria, ouviam-se três pregações por dia, e depois alguns continuavam trabalhando.
A ternura e a misericórdia são a essência da sua mensagem pastoral…
E do Evangelho. É o centro do Evangelho. Caso contrário, não se entende Jesus Cristo, a ternura do Pai que o envia para nos ouvir, para nos curar, para nos salvar.
Mas essa mensagem foi compreendida? O senhor disse que a franciscomania não vai durar muito tempo. Há algo na sua imagem pública que não lhe agrada?
Eu gosto de estar entre as pessoas, junto com quem sofre, ir às paróquias. Não me agradam as interpretações ideológicas, uma certa mitologia do Papa Francisco. Quando se diz, por exemplo, que ele sai de noite do Vaticano para ir dar de comer aos sem-teto na Via Ottaviano. Isso nunca me veio à mente. Sigmund Freud dizia, se não me engano, que em toda idealização há uma agressão. Pintar o papa como uma espécie de super-homem, uma espécie de estrela, parece-me ofensivo. O papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos, como todos. Uma pessoa normal.
Nostalgia pela sua Argentina?
A verdade é que eu não tenho nostalgia. Gostaria de ir encontrar a minha irmã, que está doente, a último de nós cinco. Gostaria de vê-la, mas isso não justifica uma viagem à Argentina: eu a chamo pelo telefone, e isso basta. Não penso em ir antes de 2016, porque na América Latina eu já fui ao Rio. Agora tenho que ir para a Terra Santa, para Ásia e depois para a África.
O senhor recém-renovou o passaporte argentino. O senhor, contudo, ainda é um chefe de Estado.
Eu o renovei porque venceu.
Desagradaram-lhe aquelas acusações de marxismo, especialmente norte-americanas, depois da publicação da Evangelii gaudium?
Nem um pouco. Nunca compartilhei a ideologia marxista, porque não é verdadeira, mas conheci muitas pessoas boas que professavam o marxismo.
Os escândalos que perturbaram a vida da Igreja, felizmente, ficaram para trás. Foi-lhe dirigido, sobre o delicado tema dos abusos de menores, um apelo publicado pelo jornal Il Foglio e assinado, dentre outros, pelos filósofos Besançon e Scruton, para que o senhor faça ouvir a sua voz contra os fanatismos e a má consciência do mundo secularizado que respeita pouco a infância.
Quero dizer duas coisas. Os casos de abuso são terríveis, porque deixam feridas muito profundas. Bento XVI foi muito corajoso e abriu um caminho. A Igreja, nesse caminho, fez muito. Talvez mais do que todos. As estatísticas sobre o fenômeno da violência contra as crianças são impressionantes, mas também mostram com clareza que a grande maioria dos abusos ocorre no ambiente familiar e na vizinhança. A Igreja Católica talvez seja a única instituição pública que se moveu com transparência e responsabilidade. Ninguém mais fez mais. No entanto, a Igreja é a única a ser atacada.
Santo Padre, o senhor diz “os pobres nos evangelizam”. A atenção à pobreza, a marca mais forte da sua mensagem pastoral, é confundida por alguns observadores como uma profissão de pauperismo. O Evangelho não condena o bem-estar. E Zaqueu era rico e caridoso.
O Evangelho condena o culto ao bem-estar.O pauperismo é uma das interpretações críticas. Na Idade Média, havia muitas correntes pauperistas. São Francisco teve a genialidade de colocar o tema da pobreza no caminho evangélico. Jesus diz que não se pode servir a dois senhores, Deus e a Riqueza. E, quando formos julgados no juízo final (Mateus 25), vai importar a nossa proximidade com a pobreza. A pobreza afasta da idolatria, abre as portas para a Providência. Zaqueu devolve metade da sua riqueza aos pobres. E a quem têm os celeiros cheios do próprio egoísmo, o Senhor, no fim, apresenta a conta. O que eu penso da pobreza eu bem expressei na Evangelii gaudium.
O senhor indicou na globalização, sobretudo financeira, alguns dos males que agridem a humanidade. Mas a globalização arrancou milhões de pessoas da pobreza. Deu esperança, um sentimento raro que não deve ser confundido com o otimismo.
É verdade, a globalização salvou muitas pessoas da pobreza, mas condenou muitas outras a morrer de fome, porque, com esse sistema econômico, ela se torna seletiva. A globalização na qual a Igreja pensa não se assemelha a uma esfera, em que cada ponto é equidistante do centro e em que, portanto, se perde a peculiaridade dos povos, mas sim a um poliedro, com as suas diversas faces, pelas quais cada povo conserva a sua própria cultura, língua, religião, identidade. A atual globalização “esférica” econômica, e sobretudo financeira, produz um pensamento único, um pensamento fraco. No centro, não há mais a pessoa humana, somente o dinheiro.
O tema da família é central na atividade do Conselho dos oito cardeais. Desde a exortação Familiaris consortio, de João Paulo II, muitas coisas mudaram. Dois sínodos estão sendo programados. Esperam-se grandes novidades. O senhor disse sobre os divorciados: não devem ser condenados, devem ser ajudados.
É um longo caminho que a Igreja deve fazer. Um processo desejado pelo Senhor. Três meses depois da minha eleição, foram submetidos a mim os temas para o Sínodo. Propõe-se a discutir sobre qual era a contribuição de Jesus ao homem contemporâneo. Mas, no fim, com passagens graduais – que para mim foram sinais da vontade de Deus – escolheu-se discutir a família que atravessa uma crise muito séria. É difícil formá-la. Os jovens se casam pouco. Há muitas famílias separadas, nas quais o projeto de vida comum fracassou. Os filhos sofrem muito. Devemos dar uma resposta. Mas, para isso, é preciso refletir muito profundamente. É o que o Consistório e o Sínodo estão fazendo. É preciso evitar ficar na superfície. A tentação de resolver todos os problemas com a casuística é um erro, uma simplificação de coisas profundas, como faziam os fariseus, uma teologia muito superficial. É à luz da reflexão profunda que poderão ser enfrentadas seriamente as situações particulares, mesmo a dos divorciados, com profundidade pastoral.
Por que a conferência do cardeal Walter Kasper no último Consistório (um abismo entre doutrina sobre o matrimônio e a família, e a vida real de muitos cristãos) dividiu tanto os cardeais? Como o senhor acha que a Igreja pode percorrer esses dois anos de árduo caminho chegando a um amplo e sereno consenso? Se a doutrina é sólida, por que é necessário debate?
O cardeal Kasper fez uma belíssima e profunda apresentação, que em breve será publicada em alemão, e abordou cinco pontos; o quinto era o dos segundos matrimônios. Eu me preocuparia se, no Consistório, não houvesse uma discussão intensa, não serviria para nada. Os cardeais sabiam que podiam dizer o que queriam e apresentaram muitos pontos de vista diferentes, que enriquecem. Os debates fraternos e abertos fazem crescer o pensamento teológico e pastoral. Disso, eu não tenho medo, ao contrário, o busco.
No passado recente, era habitual o apelo aos chamados “valores inegociáveis”, sobretudo em bioética e na moral sexual. O senhor não retomou essa fórmula. Os princípios doutrinais e morais não mudaram. Essa escolha significa, talvez, indicar um estilo menos prescritivo e mais respeitoso à consciência pessoal?
Eu nunca compreendi a expressão “valores inegociáveis”. Os valores são valores, e basta, não posso dizer que entre os dedos de uma mão haja um menos útil do que os outros. Por isso, não entendo em que sentido possa haver valores inegociáveis. O que eu tinha a dizer sobre o tema da vida, eu escrevi na exortação Evangelii gaudium.
Muitos países regulam as uniões civis. É um caminho que a Igreja pode compreender? Mas até que ponto?
O matrimônio é entre um homem e uma mulher. Os Estados laicos querem justificar as uniões civis para regular diversas situações de convivência, impulsionados pela exigência de regular aspectos econômicos entre as pessoas, como por exemplo assegurar a assistência de saúde. Trata-se de pactos de convivência de várias naturezas, dos quais eu não saberia elencar as diversas formas. É preciso ver os diversos casos e avaliá-los na sua variedade.
Como será promovido o papel das mulheres na Igreja?
Aqui também a casuística não ajuda. É verdade que a mulher pode e deve estar mais presente nos lugares de decisão da Igreja. Mas eu chamaria isso de uma promoção de tipo funcional. Só assim não se faz um longo caminho. Ao contrário, é preciso pensar que a Igreja tem o artigo feminino “a”: é feminina desde as suas origens. O grande teólogo Urs von Balthasar trabalhou muito sobre esse tema: o princípio mariano guia a Igreja ao lado do petrino. A Virgem Maria é mais importante do que qualquer bispo e de que qualquer apóstolo. O aprofundamento teologal está em andamento. O cardeal Rylko, com o Conselho dos Leigos, está trabalhando nessa direção com muitas mulheres especialistas em várias matérias.
A meio século da Humanae vitae, de Paulo VI, a Igreja pode retomar o tema do controle de natalidade? O cardeal Martini, seu coirmão, considerava que já havia chegado o momento.
Tudo depende de como é interpretada a Humanae vitae. O próprio Paulo VI, no fim, recomendava muito misericórdia aos confessores, atenção às situações concretas. Mas a sua genialidade foi profética, ele teve a coragem de se inclinar contra a maioria, de defender a disciplina moral, de exercer um freio cultural, de se opor ao neomalthusianismo presente e futuro. A questão não é a de mudar a doutrina, mas sim de ir fundo e fazer com que a pastoral leve em conta as situações e o que é possível fazer para as pessoas. Também sobre isso se falará no caminho do Sínodo.
A ciência evolui e redesenha os limites da vida. Faz sentido prolongar artificialmente a vida em estado vegetativo? O testamento biológico pode ser uma solução?
Eu não sou um especialista nos assuntos bioéticos. E temo que cada frase minha possa ser equivocada. A doutrina tradicional da Igreja diz que ninguém é obrigado a usar meios extraordinários quando se sabe que está em uma fase terminal. Na minha pastoral, nesses casos, eu sempre aconselhei cuidados paliativos. Em casos mais específicos, é bom recorrer, se necessário, ao conselho dos especialistas.
A próxima viagem à Terra Santa levará a um acordo de intercomunhão com os ortodoxos que Paulo VI, há 50 anos, quase tinha chegado a firmar com Atenágoras?
Estamos todos impacientes para obter resultados “fechados”. Mas o caminho da unidade com os ortodoxos significa, acima de tudo, caminhar e trabalhar juntos. Em Buenos Aires, nos cursos de catequese, vinham diversos ortodoxos. Eu passava o Natal e o dia 6 de janeiro junto com os seus bispos, que às vezes pediam também conselho aos nossos escritórios diocesanos. Eu não sei se é verdade o episódio que se conta sobre Atenágoras, que teria proposto a Paulo VI que caminhassem juntos e mandassem todos os teólogos a uma ilha para discutir entre si. É uma piada, mas o importante é que caminhemos juntos. A teologia ortodoxa é muito rica. E eu acredito que eles têm grandes teólogos neste momento. A sua visão da Igreja e da sinodalidade é maravilhosa.
Em alguns anos, a maior potência mundial será a China, com a qual o Vaticano não tem relações. Matteo Ricci era jesuíta como o senhor.
Estamos próximos da China. Eu enviei uma carta ao presidente Xi Jinping, quando ele foi eleito, três dias depois de mim. E ele me respondeu. Há relações. É um povo grande ao qual eu quero bem.
Por que, Santo Padre, o senhor nunca fala da Europa? O que não o convence do projeto europeu?
Você se lembra do dia em que eu falei da Ásia? O que eu disse? (Aqui o cronista se aventura em algumas explicações, recolhendo memórias vagas, para depois perceber que havia caído em uma simpática armadilha). Eu não falei nem na Ásia, nem da África, nem da Europa. Só na América Latina, quando estive no Brasil e quando tive que receber a Comissão para a América Latina. Ainda não houve a ocasião para falar da Europa. Ela virá.
Que livro o senhor está lendo nestes dias?
Pietro e Maddalena, de Damiano Marzotto, sobre a dimensão feminina da Igreja. Um belíssimo livro.
E o senhor não consegue ver alguns belos filmes, outra de suas paixões? A grande beleza ganhou o Oscar. O senhor vai vê-lo?
Não sei. O último filme que eu vi foi A vida é bela, de Benigni. E antes tinha revisto A estrada da vida, de Fellini. Uma obra-prima. Eu também gostava de Wajda…
São Francisco teve uma juventude despreocupada. Eu lhe pergunto: o senhor nunca se apaixonou?
No livro O jesuíta, eu conto sobre quando eu tinha uma namoradinha aos 17 anos. E eu também faço referência a isso em Sobre o céu e a terra (Companhias das Letras, 2013), o livro que eu escrevi com Abraham Skorka. No seminário, uma moça me fez virar a cabeça por uma semana.
E como isso acabou, sem querer ser indiscreto?
Eram coisas de jovens. Falei a respeito com o meu confessor (um grande sorriso).
Obrigado, Santo Padre.
Obrigado a você.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Historiador protestante é convencido por sua ‘honestidade histórica’ e se converte ao catolicismo


Eu fui criado como um protestante evangélico, em Birmingham, no Alabama. Meus pais eram amorosos e dedicados, sinceros em sua fé, e profundamente envolvidos em nossa igreja. Eles incutiram em mim o respeito pela Bíblia como a Palavra de Deus, e um desejo e uma fé viva em Cristo.
Missionários frequentavam nossa casa e traziam o seu entusiasmo pelo seu trabalho. As estantes em nossa casa estavam cheias de livros de teologia e apologética. Desde cedo, eu absorvi a noção de que a minha maior vocação era ensinar a fé cristã. Suponho que não seja nenhuma surpresa que eu tenha me tornado um historiador da Igreja, mas me tornar um católico era a última coisa que eu esperava.
A igreja da minha família era nominalmente Presbiteriana, mas as diferenças denominacionais significavam muito pouco para nós. Eu frequentemente ouvia que divergências sobre o batismo, a ceia, ou o governo da igreja do Senhor não eram importantes, desde que eu acreditasse no Evangelho. Assim, queríamos dizer que a pessoa deve “nascer de novo”, que a salvação é pela fé, e que a Bíblia é a única autoridade para a fé cristã. Nossa igreja apoiava os ministérios de muitas denominações protestantes diferentes, mas o grupo certamente estava em oposição a Igreja Católica.
O mito de uma “recuperação” protestante do Evangelho era forte em nossa igreja. Eu aprendi muito cedo a idolatrar os reformadores protestantes Martinho Lutero e João Calvino, porque supostamente haviam resgatado o Cristianismo das trevas do Catolicismo medieval. Os católicos eram os que confiavam nas “boas obras” para levá-los para o céu, que se renderam à tradição ao invés das Escrituras, e que adoravam Maria e os santos em vez de Deus. Sua obsessão com os sacramentos também criou um enorme obstáculo para a verdadeira fé e um relacionamento pessoal com Jesus. Não havia dúvida. Os católicos não eram verdadeiros cristãos.
Nossa igreja era caracterizada por uma espécie de intelectualismo confiante. Presbiterianos tendem a ser bastante ou teologicamente intelectuais, e professores de seminário, apologistas, cientistas e filósofos eram os oradores frequentes de nossas conferências. Foi essa atmosfera intelectual que atraiu o meu pai para a igreja, e suas estantes estavam lotadas com as obras do reformador João Calvino, e do puritano Jonathan Edwards, bem como autores mais recentes como B.B. Warfield, A.A. Hodge, C.S. Lewis e Francis Schaeffer. Como parte dessa cultura acadêmica, tomávamos como certo que a investigação honesta levaria alguém a nossa versão da fé cristã.
Todas estas influências deixaram impressões definitivas sobre mim como uma criança. Eu comecei a achar o Cristianismo um pouco parecido com a física newtoniana. A fé cristã consistia em certas leis eminentemente razoáveis e imutáveis, e a você estava garantida a vida eterna, desde que você tivesse construído a sua vida de acordo com esses princípios. Eu também pensava que esta era a mensagem claramente enunciada no livro oficial da teologia cristã: a Bíblia. Somente a confiança irracional na tradição humana ou a indiferença depravada poderia explicar o fracasso de alguém se agarrar a estas simples verdades.
Havia uma estranha ironia neste ambiente altamente religioso e teológico. Deixava-se claro que era a fé e não as obras que salvavam. Também se confessava a crença protestante clássica de que todas as pessoas estão “totalmente depravadas”, o que significa que até mesmo os seus melhores esforços morais são intrinsecamente odiosos para Deus e nada podem merecer. No momento em que cheguei a escola, eu coloquei essas peças e conclui que a prática religiosa e o esforço moral eram mais ou menos irrelevantes para a minha vida. Não que eu tenha perdido a minha fé. Pelo contrário, eu a absorvi completamente. Eu tinha aceitado a Cristo como meu Salvador e era um “renascido”. Eu acreditava que a Bíblia era a palavra de Deus. Eu também acreditava que nenhum dos meus trabalhos religiosos ou morais tinha qualquer valor. Então eu parei de praticá-los.
Felizmente, a minha indiferença durou apenas alguns anos, e eu tive uma verdadeira reconversão à fé na faculdade. Descobri que a minha necessidade de Deus era mais profunda do que um simples “seguro contra incêndio”. Eu também conheci uma linda garota com quem eu comecei a ir aos cultos protestantes. Jill tinha sido criada nominalmente católica, mas não conseguiu manter-se na prática de sua fé após a Confirmação. Juntos, nós nos encontrávamos crescendo mais profundamente na fé protestante, e depois de alguns meses, ambos nos tornamos desiludidos com a atmosfera mundana da nossa Universidade de Nova Orleans. Concluímos que o Centro-Oeste americano e a faculdade evangélica Wheaton College iria nos proporcionar um ambiente mais espiritual, e nos transferimos os dois no meio do nosso segundo ano (em Janeiro de 1991).
Wheaton College, é um farol para cristãos evangélicos sinceros vindos de várias origens. Protestantes de diversas denominações diferentes ficam representados, unidos em seu compromisso com Cristo e a Bíblia. Minha infância me ensinou que a teologia, a apologética e o evangelismo eram a maior vocação do cristão, e eu encontrei-os todos em oferta abundante na Wheaton College. Foi aí que pensei pela primeira vez em comprometer a minha vida ao estudo da teologia. Foi também na Wheaton College que Jill e eu nos tornamos noivos.
Depois da formatura, Jill e eu nos casamos, e finalmente, fizemos o nosso caminho para a Universidade Evangélica Trindade Divina, em Chicago. O meu objetivo era ter uma educação de seminário, e eventualmente, completar o meu grau de Ph.D. Eu queria me tornar um daqueles professores de teologia que admirava tanto na igreja durante a minha juventude.
Atirei-me no seminário abandonando tudo. Eu amei meus cursos de teologia, da Escritura e da história da Igreja, e eu prosperei sobre a fé, confiança e sentido de missão que permeavam a escola. Eu também abracei a sua atmosfera anti-católica. Eu estava lá em 1994, quando o documento “Evangélicos e Católicos Juntos” foi publicado pela primeira vez e a faculdade foi quase que uniformemente hostil a ele. Eles viam qualquer compromisso com os católicos como sendo uma traição a Reforma. Os católicos não eram simplesmente irmãos no Senhor. Eles eram apóstatas.
Eu aceitava as atitudes anti-católicas de meus professores de seminário, por isso, quando chegou a hora de seguir em frente nos meus estudos, decidi me focar em um estudo histórico da Reforma. Eu pensava que não poderia haver uma preparação melhor, para atacar a Igreja Católica e ganhar convertidos, do que conhecer profundamente as mentes dos grandes líderes de nossa fé – Martinho Lutero e João Calvino. Eu também queria entender toda a história do Cristianismo para que pudesse colocar a Reforma no contexto. Eu queria ser capaz de mostrar como a igreja medieval tinha abandonado a verdadeira fé e como os reformadores tinham recuperado ela. Para este fim, comecei estudos de Ph.D. em teologia histórica na Universidade de Iowa. Eu nunca imaginava que a história da Reforma da Igreja iria me levar a Igreja Católica.
Antes que começasse meus estudos em Iowa, Jill e eu testemunhamos o nascimento do nosso primeiro filho, um menino. Seu irmãozinho nasceu menos de dois anos depois, e uma irmã chegou antes de sairmos de Iowa (e agora temos cinco filhos). Minha esposa estava muito ocupada cuidando das crianças, enquanto eu me comprometia quase que inteiramente aos meus estudos. Vejo hoje que eu passei muito tempo na biblioteca e não tempo suficiente com a minha esposa, meus filhos e minha filha. Eu acho que justifica essa negligência a confiança no meu senso de missão. Eu tinha uma vocação – para testemunhar a fé através do estudo teológico – e uma visão intelectual da fé cristã do meu dever cristão. Para os cristãos evangélicos, o que se acredita ser mais importante é o que a pessoa vive. Eu estava aprendendo a defender e promover essas crenças. O que poderia ser mais importante?
Eu comecei meus estudos de doutorado em Setembro de 1995. Fiz cursos no início, de história medieval e da Reforma da Igreja. Eu li os Padres da Igreja, os teólogos escolásticos, e os reformadores protestantes. Em cada etapa, tentei relacionar teólogos posteriores aos anteriores, e todos eles com as Escrituras. Eu tinha um objetivo de justificar a Reforma e isso significava, acima de tudo, investigar a doutrina da “justificação pela fé”. Para os protestantes, esta é a doutrina mais importante “recuperada” pela Reforma.
Os reformadores insistiam em que eles estavam seguindo a antiga igreja ao ensinar a “Sola Fide”, e como prova apontavam para os escritos do Padre da Igreja, Santo Agostinho de Hipona (354-430). Meus professores de seminário também apontavam para Agostinho como a fonte originária da teologia protestante. A razão para isso era o interesse de Agostinho nas doutrinas do pecado original, graça e justificação. Ele foi o primeiro dos Padres a tentar uma explicação sistemática desses temas paulinos. Ele também colocou um nítido contraste entre “obras” e “fé” (veja sua obra “Sobre o Espírito e a Letra”, 412 A.D.). Ironicamente, foi a minha investigação desta doutrina e de Santo Agostinho, o que começou a minha jornada para a Igreja Católica.
Minha primeira dificuldade surgiu quando comecei a entender o que realmente Santo Agostinho ensinou sobre a salvação. Em poucas palavras, Agostinho rejeitou a “Sola Fide”. É verdade que ele tinha um grande respeito pela fé e graça, mas via estas principalmente como a fonte de nossas boas obras. Agostinho ensinou que nós literalmente “merecemos” a vida eterna, quando nossas vidas são transformadas pela graça. Isto é completamente diferente do ponto de vista protestante.
As implicações de minha descoberta foram profundas. Eu não sabia o suficiente dos meus dias de faculdade e seminário para entender que Agostinho ensinava nada menos que a doutrina católica romana da justificação. Decidi passar então para os Padres mais antigos da Igreja em minha busca pela “fé pura” da antiguidade cristã. Infelizmente, os Padres mais antigos da Igreja eram ainda de menos ajuda do que Agostinho.
Agostinho vinha do Norte da África de fala de língua Latina. Outros vieram da Ásia Menor, Palestina, Síria, Roma, Gália, e do Egito. Eles representavam diferentes culturas, falavam línguas diferentes, e foram associados a diferentes apóstolos. Eu pensei que seria possível que alguns deles pudessem ter entendido mal o Evangelho, mas parecia improvável que todos iriam se confundir. A verdadeira fé tinha de estar representada em algum lugar do mundo antigo. O único problema era que eu não poderia encontrá-la. Não importa para onde eu olhasse, em qualquer continente, em qualquer século, os Padres concordavam: a salvação vem por meio da transformação da vida moral e não somente pela fé. Eles também ensinaram que essa transformação começa e é alimentada nos sacramentos, e não através de alguma experiência de conversão individual.
Nesta fase da minha jornada eu estava ansioso para continuar a ser um protestante. Toda a minha vida, casamento, família e carreira, estavam ligados ao protestantismo. As minhas descobertas na história da Igreja eram uma enorme ameaça para a minha identidade, então eu me virei para os estudos bíblicos a procura de conforto e ajuda. Eu pensei que se eu pudesse ficar absolutamente confiante no recurso dos reformadores com as Escrituras, então eu basicamente poderia demitir 1500 anos de história cristã. Evitei a academia católica, ou livros que eu achava que tinham a intenção de minar a minha fé, e preferi me concentrar no que eu achava que eram as obras protestantes mais objetivas, históricas e também de erudição bíblica. Eu estava procurando por uma prova sólida de que os reformadores estavam certos em sua compreensão de Paulo. O que eu não sabia era que os melhores da academia protestante do Século XX já haviam rejeitado a leitura de Lutero da Bíblia.
Lutero baseou toda a sua rejeição da Igreja sobre as palavras de Paulo: “Uma pessoa é justificada pela fé, independentemente das obras da lei” (Romanos 3, 28). Lutero assumiu que este contraste entre “fé” e “obras” significava que não havia papel para a moralidade no processo da salvação (de acordo com a visão tradicional protestante, o comportamento moral é uma resposta para a salvação, mas não um fator contribuinte). Eu aprendi que os primeiros Padres da Igreja rejeitaram essa visão. Agora eu havia encontrado toda uma série de estudiosos protestantes também dispostos a testemunhar que isso não é o que Paulo quis dizer.
Os Padres da Igreja do Século II acreditavam que Paulo havia rejeitado a relevância somente da lei judaica para a salvação (“obras da lei” = lei mosaica). Eles viam a fé como a entrada para a vida da Igreja, os sacramentos, e o Espírito. A fé nos admite os meios da graça, mas não é em si um motivo suficiente para a salvação. O que eu vi nos mais recentes e altamente respeitados estudiosos protestantes é o mesmo ponto de vista. A partir do último terço do Século XX, estudiosos como E.P. Sanders, Krister Stendhal, James Dunn e N. T. Wright, têm argumentado que o protestantismo tradicional interpretou profundamente mal a Paulo. De acordo com Stendhal e outros, a justificação pela fé é principalmente sobre as relações entre judeus e gentios, e não sobre o papel da moralidade como condição de vida eterna. Juntos, o seu trabalho tem sido referido como “A Nova Perspectiva sobre Paulo”.
Minha descoberta desta “Nova Perspectiva” foi um divisor de águas na minha compreensão das Escrituras. Eu vi, para começar, que a “Nova Perspectiva”, era na verdade a “Velha Perspectiva” dos primeiros Padres da Igreja. Comecei a testá-la contra a minha própria leitura de Paulo e descobri que ela tinha sentido. Ela também resolveu a tensão de longa data que eu sempre senti entre Paulo e o resto da Bíblia. Mesmo Lutero tinha tido dificuldade em conciliar sua leitura de Paulo com o Sermão da Montanha, a Epístola de São Tiago, e o Antigo Testamento. Uma vez que eu tentei a “Nova Perspectiva” esta dificuldade desapareceu. Relutantemente, eu tive que aceitar que os reformadores estavam errados sobre a justificação.
Essas descobertas no meu trabalho acadêmico foram paralelas em certa medida a descobertas na minha vida pessoal. A teologia protestante distingue fortemente crença de comportamento, e eu comecei a ver como isso me afetou. Desde a infância, eu sempre tinha identificado teologia, apologética e evangelismo como a mais alta vocação na vida cristã, enquanto as virtudes deveriam ser meros frutos da crença correta. Infelizmente, descobri que os frutos não estavam apenas faltando em minha vida, mas que minha teologia tinha realmente contribuido para os meus vícios. Ela me fez censura, orgulhosa, e argumentativa. Eu também percebi que tinha feito a mesma coisa para os meus heróis.
Quanto mais eu aprendia sobre os reformadores protestantes, menos pessoalmente eu gostava deles. Eu reconheci que o meu próprio fundador, João Calvino, era um homem arrogante e auto-importante, que foi brutal para com os seus inimigos, nunca aceitou a responsabilidade pessoal, e condenava a qualquer um que não concordasse com ele. Ele chamou a si mesmo de profeta e atribuiu autoridade divina ao seu próprio ensino. Isto contrasta totalmente com bastante do que eu estava aprendendo sobre os teólogos católicos. Muitos deles eram santos, significando que eles tinham vivido vidas de abnegação e caridade heroica. Mesmo os maiores deles – homens como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino – também reconheciam que eles não tinham autoridade pessoal para definir o dogma da Igreja.
Exteriormente, permaneci firmemente anti-católico. Continuei a atacar a Igreja e a defender a Reforma, mas interiormente eu estava em uma agonia psicológica e espiritual. Descobri que minha teologia e todo o trabalho da minha vida foram fundamentados em uma mentira, e que a minha própria vida ética, moral e espiritual estava profundamente carente. Eu estava perdendo rapidamente a minha motivação para contestar o Catolicismo, e em vez disso eu queria simplesmente saber a verdade. Os reformadores protestantes tinham justificado a sua revolta por um apelo à “Sola Scriptura”. Meus estudos da doutrina da justificação tinham me mostrado que a Escritura não era o guia tão claro como os reformadores alegavam. E se todo o seu apelo a “Sola Scriptura” fosse equivocado? Por que, afinal, eu trataria a “Sola Scriptura” como a autoridade final?
Quando eu levantei essa questão para mim, percebi que eu não tinha uma boa resposta. A verdadeira razão pela qual apelava para a “Sola Scriptura” era que isso é o que havia me sido ensinado. Ao estudar o assunto, descobri que nenhum protestante já deu uma resposta satisfatória para esta pergunta. Os reformadores realmente não defenderam a doutrina da “Sola Scriptura”. Eles simplesmente afirmaram ela. Pior ainda, eu aprendi que os teólogos protestantes modernos que tentaram defender a “Sola Scriptura” o fizeram com um apelo à tradição. Isso me parecia ilógico. Eventualmente, eu percebi que a “Sola Scriptura” não está nem mesmo nas Escrituras. A doutrina é auto-refutável. Vi também que os primeiros cristãos não sabiam mais de “Sola Scriptura”, do que haviam conhecido de “fé”. Sobre as questões de como somos salvos e como definimos a fé, os cristãos mais antigos encontravam o seu centro na Igreja. A Igreja era tanto a autoridade sobre a doutrina cristã, bem como o instrumento de salvação.
A Igreja era a questão para a qual eu continuava me voltando. Os evangélicos tendem a ver a Igreja como simplesmente uma associação de fiéis unidos mentalmente. Até mesmo os reformadores, Lutero e Calvino, tinham uma visão muito mais forte da Igreja do que isso, mas os antigos cristãos tinham a doutrina mais sublime de todas. Eu costumava ver sua ênfase na Igreja como anti-bíblica, ao contrário da “fé”, mas eu comecei a perceber que era minha tradição evangélica que era anti-bíblica.
A Escritura ensina que a Igreja é o Corpo de Cristo (Efésios 4, 12). Os evangélicos tendem a descartar isso como mera metáfora, mas os antigos cristãos pensavam nisso como, literalmente, embora misticamente, a verdade. São Gregório de Nissa disse: “Aquele que contempla a Igreja realmente contempla Cristo.” Enquanto eu pensava sobre isso, eu percebia que ele disse uma verdade profunda sobre o significado bíblico da salvação. São Paulo ensina que os batizados foram unidos a Cristo na sua morte, para que também eles fossem unidos a ele na ressurreição (Romanos 6, 3-6). Esta união, literalmente, torna o cristão um participante da natureza divina (2 Pedro 1, 4). Santo Atanásio poderia até dizer, “Ele se fez homem para que pudéssemos ser elevados a Deus” (De Incarnatione, 54,3). A antiga doutrina da Igreja agora fazia sentido para mim, porque eu via que a própria salvação nada mais é que a união com Cristo e um crescimento contínuo em sua natureza. A Igreja não é uma mera associação de pessoas com interesses semelhantes. É uma realidade sobrenatural porque compartilha da vida e ministério de Cristo.
Essa percepção também fazia sentido na doutrina sacramental da Igreja. Quando a Igreja batiza, absolve os pecados, ou acima de tudo, oferece o Santo Sacrifício da Missa, é realmente Cristo quem batiza, absolve e oferece o seu próprio Corpo e Sangue. Os sacramentos não diminuem a Cristo. Eles o tornam presente.
As Escrituras são bastante simples sobre os sacramentos. Se você tomá-los literalmente, você deve concluir que o batismo é o “banho de renascimento e renovação pelo Espírito Santo” (Tito 3, 5). O que Jesus quis dizer quando disse: “A minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida” (João 6, 55). Ele não estava mentindo quando ele prometeu “a quem perdoardes os pecados lhes serão perdoados” (João 20, 23). Isto é exatamente como os antigos cristãos entendiam os sacramentos. Eu já não podia acusar os antigos cristãos de serem anti-bíblicos. Por que razão eu deveria rejeitá-los em tudo?
A antiga doutrina cristã da Igreja também fez sentido na questão da veneração dos santos e mártires. Eu aprendi que a doutrina católica sobre os santos é apenas um desenvolvimento desta doutrina bíblica do Corpo de Cristo. Os católicos não adoram os santos. Eles veneram a Cristo em seus membros. Ao invocar a sua intercessão, os católicos apenas confessam que Cristo está presente e operante na sua Igreja no céu. Os protestantes frequentemente objetam que a veneração dos santos católicos de alguma forma diminui o ministério de Cristo. Eu comecei a entender agora que o inverso é a verdade. São os protestantes que limitam o alcance da obra salvadora de Cristo, negando suas implicações para a doutrina da Igreja.
Meus estudos mostraram essa teologia concretizada na devoção da Igreja antiga. Conforme eu continuava a minha investigação de Santo Agostinho, eu aprendia que esse “herói protestante” abraçou completamente a veneração de santos. Peter Brown (nascido em 1935), um estudioso de Santo Agostinho, também me ensinou que os santos não estavam relacionados com o Cristianismo antigo. Ele argumentou que não se pode separar o Cristianismo antigo da devoção aos santos, e ele colocou Santo Agostinho diretamente nesta tradição. Brown mostrou que esta não era uma mera importação pagã no Cristianismo, mas sim estava ligado intimamente à noção cristã de salvação (Veja “O Culto dos Santos: A Sua Origem e Função no Cristianismo Latino”).
Quando entendi a posição católica sobre a salvação, a Igreja e os santos, os dogmas marianos também pareciam se encaixar. Se o coração da fé cristã é a união de Deus com a nossa natureza humana, a Mãe desta natureza humana tem um papel extremamente importante e único em toda a história. Por isso, os Padres da Igreja sempre celebraram Maria como a segunda Eva. O seu “sim” a Deus na anunciação desfez o “não” de Eva no jardim. Se era apropriado, venerar os santos e mártires da Igreja, quanto mais apropriado não seria dar honra e veneração a ela que tornou possível nossa redenção?
No momento em que eu terminei meu doutorado, eu tinha revisto completamente a minha compreensão da Igreja Católica. Vi que a sua doutrina sacramental, a sua visão da salvação, sua veneração a Maria e aos santos, e suas reivindicações de autoridade estavam todas fundamentadas nas Escrituras, nas tradições mais antigas, e no claro ensino de Cristo e dos apóstolos. Eu também percebi que o protestantismo era uma massa confusa de inconsistências e lógica torturada. Não só era falsa a doutrina protestante, mas criava contenção, e não poderia mesmo permanecer inalterada. Quanto mais eu estudava, mais eu percebia que a minha herança evangélica tinha me movido para longe não só do Cristianismo antigo, mas mesmo a partir do ensino de seus próprios fundadores protestantes.
Os evangélicos americanos modernos ensinam que a vida cristã começa quando você “convida Jesus a entrar em seu coração”. A conversão pessoal (o que eles chamam de “nascer de novo”) é vista como a essência e o começo da identidade cristã. Eu sabia a partir de minha leitura dos Padres que este não era o ensino da Igreja primitiva. Eu aprendi estudando os reformadores que não era nem mesmo o ensino dos primeiros protestantes. Calvino e Lutero tanto inequivocamente identificavam o batismo como o início da vida cristã. Eu procurei em vão em suas obras por qualquer exortação ao “novo nascimento”. Eu também aprendi que não descartavam a Eucaristia como sem importância, como eu o fazia. Enquanto eles rejeitavam a teologia católica sobre os sacramentos, ambos continuaram a insistir que Cristo está realmente presente na Eucaristia. Calvino mesmo ensinou em 1541 que uma compreensão adequada desta Eucaristia é “necessária para a salvação”. Ele não sabia nada do individualista, do Cristianismo do “novo nascimento” no qual eu havia crescido.
Terminei a minha licenciatura em Dezembro de 2002. Os últimos anos de meus estudos foram realmente muito obscuros. Mais e mais, parecia-me que os meus planos estavam ficando desequilibrados, e o meu futuro na escuridão. Minha confiança ficou muito abalada e eu realmente duvidava, que eu poderia acreditar em qualquer coisa. O Catolicismo começou a me parecer como a interpretação mais razoável da fé cristã, mas a perda da fé de minha infância foi demolidora. Orei por orientação. No final, eu creio que foi a graça que me salvou. Eu tinha uma esposa e quatro filhos, e Deus finalmente me mostrou que eu precisava de mais do que os livros em minha vida. Sinceramente, eu também precisava de mais do que “somente a fé”. Eu precisava de ajuda real para viver a minha vida e batalhar contra os meus pecados. Encontrei isso nos sacramentos da Igreja.
Em vez da “Sola Scriptura”: eu precisava da orientação verdadeira de um professor com autoridade. Encontrei isso no Magistério da Igreja. Descobri realmente que toda a minha companhia eram os santos no céu – e não apenas os seus livros sobre a terra. Em suma, eu descobri que a Igreja Católica foi idealmente formada para atender as minhas necessidades espirituais reais. Além de verdade, descobri Jesus em sua Igreja, através de sua Mãe, e em toda a companhia dos seus santos. Entrei na Igreja Católica em 16 de Novembro de 2003. Minha esposa também tinha sua própria aversão contra as profundezas da Igreja e hoje minha família é uma família feliz e entusiasticamente católica. Agradeço aos meus pais por me apontarem Cristo e as Escrituras. Agradeço a Santo Agostinho por me apontar a igreja.